Nem a greve dos caminhoneiros e nem a falta de combustível impediram a realização do Piri Bier 2018, o maior festival de cervejas do Centro-Oeste.
Às vésperas do evento, muita gente andava aflita, sem saber se conseguiria chegar lá, no simpático e histórico município de Pirenópolis, no interior goiano.
Alguns jogaram a toalha e desistiram de participar; outros, porém, foram no tudo ou nada: “Piri Bier, lá vou eu!”. Sim, vale tudo por uma boa cerveja.
Assim foi também com o evento que ocorreu na mesma data, bem longe de “Piri”, em Belo Horizonte (MG). O Concurso Nacional das Acervas aconteceu, apesar dos pesares, e os cervejeiros brasilienses trouxeram, de quebra, 12 medalhas.
Os campeões voltaram eufóricos de BH. Da mesma forma, voltaram extasiados de Pirenópolis os organizadores do Piri Bier e do 1º Congresso Técnico de Sommeliers, promovido pela Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva) em Pirenópolis ao longo da manhã e tarde de quinta e sexta, com degustações harmonizadas no sábado.
Aventura
O casal Alexandre e Rogéria Xerxenevsky, da X Craft Beer, traduz a jornada de São Paulo até Piri como uma “aventura”. Os dois saíram de Sampa na terça com uma picape movida a diesel, mas o tanque estava vazio. “Meu grupo de jipeiros informou que havia 3 mil litros de diesel na Anchieta, mas não tinha como chegar lá com a picape”, relata Alexandre. “Então, fui com outro carro, levei duas bombonas para encher com 100 litros, voltei a Interlagos e transferi um pouco do combustível para a picape. Consegui, desta forma, retornar até a Anchieta para abastecer o restante do tanque e pegar a estrada para Pirenópolis”.
Alexandre e Rogéria chegaram à cidade na quarta à noite e partiram direto para o evento – que já havia começado –, a fim de montar o estande.
Apesar do trabalho intenso, tudo deu certo e a X Craft Beer pôde oferecer ao público cinco rótulos: 61IPA (American IPA), Angel Dust (Belgian IPA), Shadowplay (NEIPA), Blanche do Cerrado (Witbier) e o lançamento Painkiller (Double IPA).
A cerveja Dressed in Black (Black Rye IPA), por sua vez, não ficou pronta para o Piri Bier, mas será lançada ainda este mês em Brasília.
Recuperação
Para o organizador do festival, Ricardo Trick, o Piri Bier foi parcialmente prejudicado pela greve dos caminhoneiros, mas, apesar disso, o resultado foi satisfatório, com a presença de um público expressivo na quinta, sexta e sábado.
“Tivemos inicialmente um problema na montagem, pois o primeiro caminhão que viria com os pisos enfrentou o bloqueio nas estradas e só foi liberado no dia da abertura do festival, às 19h. Então, a saída foi improvisar”, revela. “Depois, houve problema na entrega dos chopes, mas todos, no final das contas, chegaram”.
Segundo ele, até um mês atrás, quase todas as hospedagens estavam reservadas, mas, devido à greve, houve cancelamento em torno dos 30%. “No fim de semana houve recuperação e as pousadas voltaram a ficar lotadas, sinal da força que tem esse festival”, observa.
Concurso
Um dos destaques do evento foi a 2ª Copa Piri Bier de Cervejas Caseiras, cujos vencedores foram conhecidos na noite de quarta-feira, dia 30 de maio.
As brejas poderiam ser de qualquer estilo, desde que contivessem ingredientes genuinamente brasileiros em uma das três subcategorias: com frutas, com madeira e com ervas, vegetais e especiarias.
Um time de primeira analisou as amostras: Chiara Barros, Lazaro Carneiro, Carlo Lapolli, chef Ronaldo Rossi, Anderson Machado, Bárbara Soares, Carlos Vitor Müller, Douglas Evangelista e José Raimundo Padilha.
Levou a melhor a Brown Porter com cumaru, seguida da IPA com sucupira e a Witbier com limão siciliano, umbu e coentro.
Estreantes
O Piri Bier 2018 trouxe novos protagonistas em seus estandes. É o caso da Stadt Cervejaria, que esteve no evento de Goiânia em 2017, mas fez sua primeira participação no festival em Pirenópolis. “O Congresso Técnico de Sommeliers deu ainda mais força ao evento deste ano”, avalia Marc Cunha, sócio-proprietário da Stadt.
Estavam plugados todos os rótulos da marca, além da UEPA (American IPA), da Embuarama; e Cabulosa (NEAPA), do cervejeiro Alan Nogueira Jr., proprietário do Bunker Micropub em Brasília.
Quem também fez seu début no Piri Bier 2018 foram a Cruls Cervejaria e Metanoia, que dividiram o mesmo estande. Nas taps, Red Rye IPA, Belgian Blond Ale, American Pale Ale, Berliner Weisse, Conexão 060 (Session IPA), Bacon IPA e Amortentia (Sour) em duas versões (com jabuticaba e amora, e com morango, maracujá e pitaya).
Outro que estreou com estande foi a ÊIOU, conhecido bar e empório de cervejas artesanais de Pirenópolis, sob o comando do casal Lucas Amaral e Adriana Figueiredo.
Os visitantes puderam degustar chopes plugados em três torneiras, além de terem à disposição cerca de 70 rótulos envasados.
“Até hoje recebemos clientes que vão à loja por conta do festival. Se tudo der certo, pretendemos voltar ao Piri Bier em 2019”, afirma Lucas.
Madeiras brasileiras
O projeto Tanoa, que foi tema de palestra durante o Congresso Técnico de Sommeliers, teve estande próprio no festival.
Eduardo e Edson Martins, da tanoaria Dornas Havana, e Eduardo Neves, da cervejaria Embuarama, desenvolveram cervejas potentes, com 9% de álcool, e maturadas em madeiras brasileiras.
“Em nosso estudo, buscamos estabelecer a quantidade de madeiras necessárias para que a bebida tenha um aporte sensorial relevante”, explica Eduardo Martins. “Depois vemos qual a melhor tosta e, finalmente, o formato da madeira. Muita gente usa os chips; entretanto, ao serem tostados, perdem elementos voláteis. Então desenvolvemos os ‘dadinhos’, que permitem gerar dulçor à cerveja”.
As brejas disponíveis no estande do projeto Tanoa foram maturadas durante três meses com “dadinhos” e, na hora de servir, passaram por barris de bálsamo e cumaru, e eucalipto e bálsamo. “Madeira brasileira com cerveja será um trabalho de referência. É isso que estamos buscando”, pontua Martins.
Para Carlo Lapolli, presidente da Abracerva, cervejas com madeiras brasileiras são uma nova fronteira a ser explorada pelos cervejeiros no País. “Daqui a alguns anos, veremos grande interesse nesses produtos por parte dos consumidores não só do Brasil, como do exterior”, analisa. “São cervejas com expressão única e características muito fortes do País. Precisamos explorar isso de maneira inteligente”.
Congresso Técnico de Sommeliers
Palestras, harmonizações e debates marcaram o tom do 1º Congresso Técnico de Sommeliers, organizado pela Abracerva.
O auditório da Universidade Estadual de Goiás (UEG), em Pirenópolis, foi o local escolhido para o evento, que reuniu sommeliers, cervejeiros e interessados no tema. A programação ocorreu paralelamente ao Piri Bier e com total apoio do festival.
Trata-se de uma iniciativa inédita, que discute os rumos de uma das profissões mais novas no mercado. No Brasil, esse debate se torna ainda mais necessário, visto que o País é o que mais forma sommeliers de cerveja no mundo.
“O Congresso foi nosso primeiro evento de grande porte e um sucesso, seja pelo ponto de vista dos palestrantes, que adoraram a interação com o público, seja pelos sommeliers, que vivenciaram uma experiência diferente, tendo contato com grandes nomes do mercado e com bastante história na sommelieria e na gastronomia”, avalia Carlo Lapolli.
A sommelière Marta Ibañez, coordenadora de eventos da Abracerva, acredita que houve algumas falhas pontuais, mas foram superadas. “Sinceramente, estamos extremamente satisfeitos, mesmo com todos os acontecimentos nas últimas semanas”, pontua.
O evento teve início com o workshop de Katia Jorge sobre análise sensorial. Para ela, que é diretora da FlavorActiv na divisão Américas, o sommelier não deve apenas procurar por falhas na cerveja, mas descrever o produto. “Observe as características que vêm do malte, do lúpulo e da levedura. Use os cinco sentidos”, ensina. E antes de avaliar sensorialmente a cerveja, ela recomenda fazer um treinamento primeiramente com a água, para apurar a percepção.
Cozinhando com cerveja
O chef Ronaldo Rossi, que foi mestre de cerimônias do Congresso, veio na sequência, apresentando a palestra Cozinhando com cerveja. Também comandou uma harmonização com cervejas no almoço de sexta, ocorrido na própria UEG.
Rossi deu várias dicas sobre como harmonizar pratos com os diversos estilos cervejeiros. Cervejas muito amargas, em sua opinião, não são boa opção na gastronomia. “Pratos muito picantes não combinam bem com IPA, pois o lúpulo potencializa demais a pimenta”, explica.
O bom serviço fideliza clientes
Um dos momentos que gerou mais debates e participação do público foi o workshop Serviço da cerveja, comandado pela sommelière de cervejas, consultora e gastrônoma Carolina Oda.
Ela defende que o sommelier deve dominar as técnicas de serviço, conhecer o produto que está à venda, ser uma ponte entre a cozinha e o salão, e evitar a “gourmetização” excessiva, para não afastar o cliente.
Para a especialista, a pessoa que vai a um bar não tem como objetivo final comer e beber, mas se divertir. “Se não fosse assim, ele beberia em casa”, opina.
Carolina cita quatro esferas envolvidas na experiência de consumo dentro de um bar ou restaurante, de acordo com o livro Economia da Experiência, de B. Joseph Pine e James H. Gilmore.
São elas a estética (aparência do lugar, beleza dos copos e talheres, etc.), aprendizagem (mostrar ao cliente aspectos sobre o produto escolhido, mas de forma bastante objetiva), entretenimento (no caso da cerveja, a bebida deve estar conectada ao lazer e ao prazer) e evasão (o cliente se conecta tão bem com a experiência, que não vê o tempo passar). “Infelizmente, a gente ainda vê um mercado em que os profissionais trabalham mais por sua vaidade do que para proporcionar alegria ao outro”, critica.
Queijo com Prosa
Criador da empresa Queijo com Prosa, o chef e sommelier de cervejas Daniel Martins falou sobre a luta de produtores de queijos artesanais na legalização de seus produtos.
Ele lembra que a legislação não reconhece o leite cru e nem as práticas tradicionais de produção. Ao mesmo tempo, o IPHAN registrou o modo artesanal de fazer os queijos de Minas como patrimônio imaterial brasileiro.
“Queijos feitos com leite cru expressa muito o terroir de determinada região. São queijos que curam, evoluem. Apesar de haver excelentes queijos de leite pasteurizado, normalmente eles não têm cura boa. Logo acidificam, azedam”, detalha.
Segundo ele, a incidência alarmante de pessoas com intolerância à lactose advém do consumo incentivado de “leite pobre, sem cultura de micro-organismos”. “Um estudo na França mostrou isso”, argumenta. “Muitas doenças são ligadas à nossa flora intestinal. O leite cru tem uma cultura de micro-organismos que nos fortalece”.
Ao longo de sua palestra, Daniel realizou uma pequena harmonização de queijos com cervejas. Um deles faz parte do projeto Braukäse (“queijo do cervejeiro”, em alemão), criado pela mestre queijeira Maristela Nicolellis, da Fazenda Santa Luzia, em Itapetininga (SP), em parceria com Daniel Martins.
A Xpresso Peanut, uma Oatmeal Coffee Stout, da cervejaria Synergy, foi utilizada no preparo do queijo, durante o processo de cura e lavagem da casca. “A cerveja empresta um caráter aromático ao queijo, enquanto o álcool ajuda a deixá-lo mais macio”, esclarece Daniel.
Ingredientes brasileiros
Alberto Nascimento, sommelier da Cerveja Colombina; Marcelo Scavone, fundador da Escola da Cerveja; e Idney Nuno, um dos idealizadores do projeto Catharina Sour, falaram sobre os biomas brasileiros aplicados à cerveja artesanal.
Mesmo com a grande biodiversidade e o uso de ingredientes típicos dos biomas do País nas cervejas, Nuno acredita que é muito cedo para se falar em “escola brasileira”. “A gente já produz malte, alguns tipos de lúpulo e temos laboratórios isolando leveduras próprias. A questão é: será que isso é suficiente para fazer do Brasil um postulante de ingresso no guia de estilos?”, questiona.
Sobre o projeto Catharina Sour, ele diz que nunca foi a intenção a criação de um novo estilo. “Fizemos, no início, uma Berliner Weisse com frutas, mas não tivemos uma boa aceitação. O mercado consumidor não estava preparado”, conta. “Então pensamos em categorizá-la como uma fruit beer, até decidirmos pelo nome Catharina Sour, em alusão ao Estado onde foi criada, Santa Catarina”.
Ficou definido que esse tipo de cerveja teria como características ser de trigo, leve, refrescante, com teor alcoólico acima de uma Weizenbier, amargor praticamente imperceptível, acidez causada pelos lactobacilos e presença de alguma fruta brasileira, adicionada no terço final da fermentação. “Hoje temos cerca de 40 fábricas no Brasil espalhadas por seis estados, produzindo a Catharina Sour”, afirma.
Alberto Nascimento, por sua vez, falou sobre a necessidade de se adequar a legislação brasileira à realidade das cervejas artesanais. Assim, haverá maior liberdade na criação de brejas com ingredientes de origem animal ou mesmo sem lúpulo – gruit beers –, que as atuais normas não contemplam.
Palestrantes internacionais
Outro fato que marcou o 1º Congresso Técnico de Sommeliers foi a presença dos norte-americanos Jackie Dodd e Derek Walsh.
Conhecida pelo site TheBeeroness.com, Dodd contou um pouco sobre o crescimento da cerveja artesanal nos Estados Unidos e deu dicas de harmonização.
A norte-americana é também autora dos best-sellers Craft Beer Cookbook e Craft Beer Bites Cookbook. “Vivemos uma grande revolução, em que existe um maior conhecimento sobre cervejas. E a cena cervejeira precisa de profissionais de outras áreas para difundir essa cultura”, considera. “Contribuo como escritora e fotógrafa, além de fazer receitas com cerveja”.
Já Derek Walsh, juiz internacional de cervejas desde 1986, é uma das maiores referências mundiais da sommelieria. Ele defende que o certificado de sommelier de cervejas seja revalidado a cada dois anos, pois se trata de um profissional que precisa de reciclagem e treino sensorial constantes.
Pós-graduação em sommelieria
Rodrigo Sawamura, o mais premiado sommelier do Brasil, tendo sido duas vezes finalista do Mundial de Sommeliers, falou sobre os novos cursos oferecidos pela Escola Superior de Cerveja e Malte, de Blumenau (SC).
Destaque para a pós-graduação em sommelieria, que contempla um vasto conteúdo, com mais de 460 horas/aula. “Além da cerveja, passeamos por outras áreas: vinhos, destilados (cachaça, uísque, gim), outras bebidas fermentadas (saquê, hidromel, sidra), café, chá e outras infusões”, detalha Sawamura. “Temos também a parte gastronômica, como queijos e embutidos. Todos os temas são tratados com práticas sensoriais, ou seja, degustação, entendimento de história e classificação dos produtos. Trabalharemos, ainda, com bastante intensidade, a questão da gestão e serviço”.
O papel do sommelier é servir
Para finalizar a parte acadêmica do Congresso, foi formada uma mesa-redonda com o intuito de debater o mercado de trabalho para sommeliers de cerveja.
Sob a moderação de Marta Ibañez, contribuíram para a discussão os painelistas Taiga Cazarine, Rodrigo Sawamura, Cilene Saorin e Katia Jorge.
Cilene proferiu uma das frases mais emblemáticas do evento: “O verbo mais importante para o sommelier não é degustar ou harmonizar, mas servir, comunicar, gerenciar, conduzir e alegrar”.
Harmonizações
O sábado foi reservado para duas degustações harmonizadas com cervejas. A primeira foi o café sertanejo da Fazenda Babilônia, sob o comando de José Raimundo Padilha. No período da tarde, foi a vez de Sawamura realizar uma harmonização com o belo brunch do Santuário Ecológico Vagafogo.